Críticas


DECISÃO DE RISCO

De: GAVIN HOOD
Com: HELEN MIRREN, ALAN RICKMAN, AARON PAUL
19.04.2016
Por Hamilton Rosa Jr.
Um filmaço, daqueles em que nenhum enquadramento de cena é puramente funcional

Não é preciso chegar aos bastidores do teatro de operações militar para compreender como a tecnologia transformou a guerra num espetáculo assistido ao vivo por políticos e generais, como se fosse um reality show. No ótimo Decisão de Risco (Eye in the Sky, 2016) o serviço de espionagem e execução se ampara em dispositivos que parecem gadgets de ficção-científica. O diretor sul africano Gavin Hood garante que todos os equipamentos mostrados no filme são reais. Mesmo que fosse suposição, Decisão de Risco acena para algo que se anuncia. Se não é 100% real, é só uma questão de tempo para ser. O esquema está tão próximo, que estarrece. Há drones de todo tipo em cena, desde um robusto lançador de mísseis, a microdrones em forma primeiro de um beija-flor e, mais tarde, num momento crucial, de um besouro. Importa, em cena, o monitoramento imperceptível e um sistema de aniquilação do qual o inimigo nem percebe de onde o tiro veio. Numa cena, um homem olha para o chão, onde se estendem dezenas de corpos destroçados, inclusive de familiares. A explosão veio do céu. O cidadão olha para o alto. Seu ato de perplexidade parece tanto o de tentar entender de onde e de quem veio o bombardeio, como ele também parece estar olhando pro céu e indagando para Deus, o que seus filhos fizeram e porque foram castigados.

Só lhe resta ajoelhar, chorar e rezar.

O título original Eye in the Sky (olho no céu) dá uma dimensão mais precisa do que se desvela a seguir. Hood não faz um filme facilmente indexado em termos de política e partidarismo, ainda que a imagem do cidadão inocente comprove de que lado está o diretor. Em volta das máquinas, os drones, há todo um elenco invisível. Generais, políticos, juízes do Supremo. A missão é comandada pelos ingleses, o arsenal é americano. Helen Mirren (Oscar de melhor atriz por A Rainha) desempenha a oficial da inteligência militar britânica. É uma caçadora de terroristas contumaz, do tipo que atira primeiro e pergunta depois. Mas sua nova missão esbarra na complicada geopolítica do século 21. Prestes a fechar uma armadilha em torno de uma ex-cidadã britânica que virou líder de uma facção terrorista, ela e sua equipe estão prontos para explodir o lugar. Acontece que o teatro de operações envolve a decisão nas esferas política e jurídica de duas nações: a inglesa e americana. O ator Alan Rickman (em seu derradeiro papel no cinema) faz o negociador, o militar diplomático que procura suavizar os ânimos entre as partes envolvidas. Há divergências ideológicas, gritaria, acusações e todo tipo de situação sendo fermentada na sala de decisões.

E a bola é passada para cima e para baixo enquanto todos vêem ao vivo uma garotinha montar uma barraca para vender pão na frente do esconderijo dos terroristas. A entrada da menina em cena traz uma nova questão. Os terroristas estão vestindo coletes-bomba dentro do bunker e em breve cometerão um atentado. Centenas de pessoas, portanto, podem morrer se eles saírem do local. Os militares continuam sem dúvidas de que precisam neutralizá-los. Os políticos estão preocupados com a imagem que a ação pode implicar, os advogados, idem. Afinal, a garotinha vendedora dos pães estará morta, se ele lançaram o míssil.

A reflexão sobre a escolha cria o suspense e deixa o espectador na ponta da cadeira, mas por trás da ação em si, Decisão de Risco trata de algo mais espinhoso. O que está em pauta advém do próprio contexto do que é uma guerra hoje. Houve, de certo, mudanças na essência bélica do mundo. Saímos da guerra brutal, como vimos nos combates corpo a corpo de filmes como O Resgate do Soldado Ryan, para a guerra dos botões. A evolução desta nova ordem protagonizada por drones, já tem um histórico. Começou em Kosovo em 1999. Foi ali que pela primeira vez as máquinas foram usadas. Em princípio, estavam a serviço da espionagem. Dois anos depois, surgiram os primeiros protótipos armados com mísseis. No bombardeio a Bagdah, em novembro de 2001, foi a primeira vez que foram testados. Do ponto de vista de direitos internacionais, a partir daí, os procedimentos de localização de alvos em potencial, vigilância e decisão sobre a aniquilação das vítimas foram redefinidos. Competia ao Presidente dos EUA aprovar a lista de mortos e aos pilotos de drones executar os mesmos há milhares de quilômetros de distância. Sabe-se que Barack Obama não só tomou a decisão naquela invasão pela caça e execução de Bin Laden em Abbottabad, no Paquistão, em 2011, como assistiu a operação junto com seu conselho jurídico ao vivo.

Há um ótimo livro no mercado que ilumina o caso de sentidos e implicações, Teoria do Drone, do fílósofo francês Grégoire Chamayou (editora Cosac Naify, 2015, São Paulo). Chamayou aprofunda a diferença de tendência entre as guerras do passado e as novas. A façanha da primeira, ousa-se dizer, era o sacrifício humano; a da segunda se anuncia no avião sem piloto dirigido a distância. De um lado, as técnicas do sacrifício; do outro, as do jogo. De um lado, o engajamento integral; do outro, o descomprometimento total. De um, a singularidade de um ato vivo; do outro, a reprodutibilidade indefinida de um gesto mecânico. Independentemente do alvo, os critérios de definição sempre são perigosos. São dirigidos a indivíduos cuja identidade permanece desconhecida, mas cujo comportamento leva a supor o pertencimento a uma ‘organização terrorista’. Chamayou faz uma longa digressão sobre os princípios de geografia humana e os novos conceitos militares que foram desenvolvidos para definir quem merece viver ou morrer.

Quem merece?

Pela boa e simples razão de que não há mais combate, o estatuto da decisão tende a deslizar para um julgamento indireto, unilateral. Se existe um réu, ele nem chega a um tribunal para ser julgado. Aliás, ele está longe, e nem sabe que está sendo vigiado. No processo de espionagem, as evidências muitas vezes são presumidas. Essa sutileza ao definir o homem como um implicado ou presumivelmente implicado, semanticamente é muito diferente. Mas na nova forma de intervenção militar serve para estender o direito de matar para muito além dos limites jurídicos clássicos. O conceito de alvo legítimo adota então uma elasticidade indefinida.

Quando não há certeza da culpa do sujeito, a ordem é: cumprir a missão em nome da predominância da “segurança” da nação.

No filme Decisão de Risco a segurança é em nome da soberania dos Estados Unidos e da Inglaterra. Gavin Hood não faz concessões. A sujeira vem da luz dos refletores e das câmeras. A conclusão é muito pior do que o espectador pode presumir. Na filmografia de Hood chama a atenção o filme engajado que ele fez sobre a realidade de um adolescente nos guetos de Johanesburgo, o interessante Tsotsi, que venceu o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2005. Depois, o diretor foi para Hollywood e se meteu em uma enrascada hollywoodiana chamada Wolverine Imortal, e numa tentativa equivocada de dar consistência reflexiva ao blockbuster Ender's Game. Felizmente ele se reconcilia com a velha verve neste Decisão de Risco. É um filmaço, daqueles em que nenhum enquadramento de cena é puramente funcional.

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