A expedição sempre foi um dos mais ricos veios do cinema documental, seja ela de caráter etnográfico, científico ou de mera aventura. O que em geral caracteriza os documentários desse tipo é a progressão no sentido de se atingir uma meta – um pico difícil de escalar, uma tribo indígena complicada de alcançar, um local aparentemente inatingível. Aliada aos expedicionários, a equipe de cinema persegue os mesmos objetivos. O atingimento da viagem costuma ser a plena realização do próprio filme. E os personagens, não raro convertidos em super-homens.
Extremo Sul coloca essas equações em xeque ao acompanhar a tentativa de cinco alpinistas (dois brasileiros, dois argentinos e um chileno, ou seja, uma espécie de Mercosul montanhista) de alcançar um dos dois cumes do Monte Sarmiento, no extremo sul da Terra do Fogo. Um dos maiores desafios do alpinismo mundial, o Sarmiento só havia sido completamente escalado por três expedições até então. O grupo saiu confiante para repetir o feito. E o filme registraria esses momentos para a posteridade.
No entanto, o projeto de elogiar o espírito de aventura e de amizade entre esses jovens desportistas foi sendo aos poucos solapado pelo clima impiedoso, as hesitações, o medo e a desunião dentro da equipe. O documentário, então, vai deixando de ser um filme comum de aventura e se transformando em algo mais dramático, que às vezes se aproxima perigosamente do despenhadeiro do reality show. Mas se algo sustenta Extremo Sul fortemente atracado à superfície é justamente aquilo em que seu método aparentemente falha.
Para que tudo funcionasse bem como planejado, equipe de filmagem e alpinistas deveriam permanecer em ambientes “isolados”, em regime ora de observação, ora de depoimentos diretos. Havia até acampamentos diferentes, separados por acidentes geográficos. Um “vazamento” desse código é que dá início a uma série de desentendimentos que vão abalar a moral dos aventureiros. À medida que o objetivo começa a se dissolver, os documentaristas passam a acompanhar esse processo – e, quem sabe, contribuir para ele. Numa das cenas finais, a expressão da co-diretora Monica Schmiedt não deixa dúvidas quanto à frustração do cinema em relação à expedição. Naquele momento das filmagens, ela talvez ainda não compreendesse a importância do material que tinha nas mãos.
Há alguns anos, num festival de documentários, vi um curioso trabalho de dois universitários que tentaram insistentemente entrevistar Jean-Luc Godard, mas em vão. Pela ausência e a negação, Godard acabava fornecendo um dos melhores retratos de seu caráter elusivo e de sua dimensão mitológica. Da mesma forma, Extremo Sul acabou sendo um interessantíssimo flagrante do fracasso, esse componente inevitável da maioria das aventuras. Cenas de arquivo de uma escalada vitoriosa fazem um contraponto amargo, mas que ao mesmo tempo sacia o espectador com imagens de júbilo.
O co-diretor Sylvestre Campe, com sua vasta experiência de filmar aventuras dos Himalaias à Amazônia, devia saber que a derrota dos expedicionários nem sempre representa a desgraça do filme. Pelo contrário, pode ser o início de um ensaio sobre a natureza humana dos homens da natureza.
# EXTREMO SUL
Brasil, 2004
Direção: MONICA SCHMIEDT e SYLVESTRE CAMPE
Produção: MONICA SCHMIEDT
Fotografia: SYLVESTRE CAMPE, REYNALDO ZANGRANDI
Roteiro de filmagem: JORGE DURÁN
Montagem: MIRELLA MARTINELLI, KIKO FERRAZ
Música: LEO HENKIN
Som direto: HERON ALENCAR, CLEBER NEUTZLING
Alpinistas: NELSON BARRETTA, RONALDO FRANZEN JR. “NATIVO”, EDUARDO HUGO LÓPEZ “TATO”, WALTER ROSSINI, JULIO CONTRERAS
Duração: 92 minutos
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