Um triângulo amoroso interracial na zona portuária de Salvador é tema desafiante para qualquer cineasta brasileiro, que dirá para um estreante em longa de ficção. O baiano Sérgio Machado tem, quando nada, o mérito da ousadia. O argumento é batido – dois velhos amigos se desentendem por causa do amor comum por uma prostituta. Seu desenvolvimento no roteiro não autoriza expectativas de grandes surpresas para quem já viu os mais ousados Jules e Jim e E Sua Mãe Também. No entanto, Cidade Baixa encontra apoio em um conceito forte – existe um ponto de fusão entre a sexualidade e a violência. Essa química ferve ora nas alternâncias da montagem, ora na temperatura interna da cena. Resulta um dos filmes brasileiros mais sensuais dos últimos tempos. E também um dos mais violentos.
Sérgio aposta alto no naturalismo, na procura de uma cor local, seja ela visual ou sonora. Seu média-metragem Agora É Cinzas era o episódio melhor e mais “baiano” do longa Três Histórias da Bahia. Em Cidade Baixa, além da bela trilha climática de Carlinhos Brown e Beto Vilares, os melhores diálogos se servem gostosamente do baianês girioso. Por isso mesmo dói nos ouvidos quando as personagens se interrogam, diversas vezes, “você está bem?”. A frase mais sugere uma tradução inconsciente do bordão americano “are you OK?” do que uma pergunta audível nas cercanias da Baixa dos Sapateiros
Um detalhe como esse, em si desprezível, acaba por sinalizar uma crise de personalidade no coração desse filme bem planejado e bem executado. Todo o sangue, suor e lágrimas que banham o corpo dos ótimos atores parecem brotar de um esforço técnico por demais consciente. Da mesma forma, a construção minuciosa do ambiente não chega a “transferir” de fato o espectador para o submundo de Salvador. Semelhanças visíveis colocaram Cidade Baixa num limbo entre o futum efetivo de Amarelo Manga e a redução estilizada de Madame Satã.
No documentário Onde a Terra Acaba, Sérgio Machado havia de certa forma “domesticado” Mário Peixoto no cercadinho do tributo de bom-gosto. Agora, seu cumprimento à transgressão parece travado pelo bom comportamento. Cidade Baixa sai em busca de uma força que só a identidade plena poderia trazer.
CIDADE BAIXA
Brasil, 2005
Direção: SERGIO MACHADO
Elenco: WAGNER MOURA, LÁZARO RAMOS, ALICE BRAGA
Duração: 110 minutos
