Shah Rukh Khan fez 40 anos em novembro último. Em toda a Índia, era impossível passar ao largo dessa efeméride. O rosto travesso do maior galã de Bollywood é uma evidência incontornável desde que se desembarca em qualquer cidade indiana. Lá está ele nos outdoors, sorrindo à frente de um carro de último tipo, mastigando biscoitos com cara de “gostei” ou, em tom mais sério, posando com uma mensagem de ajuda humanitária. Mais que um ator, SRK (os indianos adoram chamar os famosos pelas iniciais) é um deus vivo, onipresente em todo o país. Ícone de uma Índia jovem, moderna e globalizada, não falta muito para que seja visto como a décima e esperada encarnação de Vishnu, o deus protetor dos hinduístas.
Uma viagem de férias é suficiente para confirmar que o cinema ocupa o lugar de uma realidade paralela na Índia. Não o cinema social ou tematicamente sofisticado que se faz na região de Bengala (Calcutá, terra de Satyajit Ray), que esse destina-se a uma parcela pequena de urbanitas ou aos festivais internacionais. O que faz a mítica do cinema indiano são os filmes ultrapopulares e de baixo custo que se fazem no centro e no sul do país, em idiomas como o marathi e o tamil, e que raramente ultrapassam as fronteiras regionais, que dirá nacionais. Mais ainda, é o cinema falado em hindi e produzido em Mumbai (ex-Bombaim), que se consagrou mundialmente com o selo Bollywood.
Assim como o inglês, que funciona como esperanto num subcontinente fragmentado em várias línguas e culturas diferentes, Bollywood é um dos maiores fatores de unificação da Índia. O segredo desse sucesso é bem conhecido: diversão, diversão e... mais diversão. Um outdoor brincava com isso em Bombaim, em novembro: “Os filmes de Bollywood terão um plot. Ficou surpreso?” O fato é que as tênues storylines da maioria desses filmes servem apenas como canal para veicular o charme e a beleza dos astros e estrelas, bem como abrir espaço para os famosos números musicais. “Depois de olharmos para uma árvore, nossa memória não vai reter a copa, mas somente os frutos. As canções são os frutos dos nossos filmes”, comparou recentemente Yash Chopra, produtor de alguns dos maiores blockbusters bollywoodianos recentes.
Esse modelo gera peculiaridades. Numa praia de Goa, pude assistir à filmagem de uma cena musical, onde cada frase da canção era exaustivamente ensaiada, com vistas à edição picotada que viria depois. O coreógrafo e os ensaiadores (um para o galã, uma para a mocinha) é que davam as cartas, enquanto o diretor recolhia-se a sua momentânea insignificância. Aos atores, por sua vez, não se pede tanto que representem bem, mas que cuidem do corpo nas academias, exercitem um invejável talento físico para as danças, meneios de corpo e brigas acrobáticas que os papéis exigem, e ainda se disponham a ter o rosto coberto por quilos de pancake a cada take.
Dos roteiristas de Bollywood, espera-se que manejem com competência os flashbacks (uma muleta freqüente para tirar histórias de dentro de histórias) e que encontrem formas interessantes de adaptar ao contexto indiano as tramas de sucessos de Hollywood. Por conta disso, ainda que sem compreender uma palavra dos diálogos em hindi, pude acompanhar facilmente o enredo de Salaam Namastê, de Siddhart Anand, êxito nacional em cartaz há várias semanas. Pudera, tratava-se de uma refilmagem da comédia Nove Meses, de Chris Columbus. Temas ousados para a dieta cinematográfica indiana, como a vida em comum e a gravidez sem casamento, e mesmo alguns picantes beijos na boca, valiam-se do álibi de que a história se passa na Austrália, entre personagens temporariamente expatriados.
Tampouco tive dificuldade para entender Kyon Ki, de Priyadarshan, sobre um interno em hospital psiquiátrico que lidera uma sublevação e é punido pela direção da casa. Alguém pensou em Um Estranho no Ninho? O roteirista também, e não escondeu a inspiração literal em inúmeras cenas. Com o fator Bollywood fazendo a diferença: o protagonista vive uma história de amor com a filha do diretor da clínica, dando margem a cantos e danças apropriadamente delirantes.
Assistir a Kyon Ki no venerando cinema Raj Mandir, de Jaipur, no coração do Rajastão, foi uma experiência inesquecível. Esse imenso palácio de ilusões tem um vestíbulo a meio caminho entre um templo (mandir) e uma Disneylândia. A decoração do auditório sugere cascatas de sorvete. Centenas de pessoas se aglomeram nas bilheterias, com filas separadas para homens e mulheres, na disputa pelos lugares mais baratos a cada sessão. Do lado de dentro, a festa é ininterrupta. Após o caos da procura dos lugares marcados, o filme começa ao som dos gritos da platéia diante da primeira aparição de cada astro na tela gigantesca. Os gritos e comentários se estendem ao longo de toda a projeção, mais ou menos abafados pelo som altíssimo (mas de excelente qualidade) da projeção. Nos poucos momentos em que o filme se cala, ouvimos o choro dos muitos bebês presentes na sala – afinal, o cinema é um programa para TODA a família.
No igualmente tradicional cinema Liberty, de Mumbai, fui surpreendido pela convocação na tela, antes do início do filme: “Levante-se para o Hino Nacional”. E a bandeira da Índia era projetada enquanto os cinéfilos perfilavam-se, pipocas quietas nos sacos. O programa, aqui, era o recém-lançado Taj Mahal – An Eternal Love Story, de Akbar Khan, épico sobre o romance imperial que deu origem à construção do famoso mausoléu. O filme é pomposamente ridículo, carregando nas intrigas palacianas e relegando o feito arquitetônico a um videoclipe fotográfico perto do final. Mas a direção de arte e os materiais de divulgação fazem tudo para convencer o espectador de que está diante de uma sucursal mongol de O Senhor dos Anéis.
A crise de qualidade do cinema bollywoodiano tem sido apontada pelos críticos, mas aparentemente não é sentida pelo público. Talvez porque o marketing tem atuado na mão contrária, inundando o país com o imaginário do cinema. Destacar um filme é tarefa hercúlea quando 12 a 16 títulos nacionais são despejados nos cinemas a cada sexta-feira. O elenco é a pedra-de-toque. Filmes estrelados por nomes como Shah Rukh Khan, Aishwara Ray, Salman Khan, Preity Zinta, Saif Ali Khan, Hrithik Roshan e Amitabh Bachchan, por exemplo, saem alguns corpos na frente.
O fenômeno Amitabh Bachchan, aliás, é um caso à parte. Nas telas desde 1969, com mais de 200 filmes no currículo, esse veterano é provavelmente o homem mais amado e fotografado em toda a Índia. Sempre elegante e impecavelmente vestido, com um bigode e um cavanhaque grisalhos que não raspa por nada nesse mundo, ele é uma espécie de talismã: tanto protagoniza seus filmes, como faz papéis menores para catapultar os trabalhos de amigos. E ainda encontra tempo para apresentar um quiz-show na TV, posar numa infinidade de anúncios publicitários, emprestar seu carisma a obras sociais e assinar sua própria linha de roupas masculinas.
O cross-marketing é avassalador. Bollywood atinge todas as idades e classes sociais, multiplicando efeitos e maximizando lucros. Filmes lançam chás, desodorantes, moda, relógios, carros, viagens. Os atores mais célebres têm uma agenda assoberbada de aparições em festas de lançamento de produtos. Até a indústria de casamentos, uma das mais prósperas da Índia, faz uso da estética e das celebridades de Bollywood para dar um upgrade em suas cerimônias cheias de luxo cenográfico – cascatas artificiais, tendas, carruagens etc.
O resultado é a criação de um firmamento de divindades só comparável ao panteão religioso. Por trás dos mitos, os bastidores de uma realidade curiosamente mambembe. Em Mumbai, no coração de Bollywood, visitei um bangalô praiano onde se filmava uma cena do thriller Darna Zaroori Hai (algo como “Você Deve Ter Medo”), realização coletiva de vários diretores com o roteirista Ashish Deo. Numa sala minúscula, cerca de 20 técnicos e atores se espremiam num ensaio. À falta de som direto (a grande maioria dos filmes indianos é dublada em estúdio), todos falavam e se moviam ao mesmo tempo, sem requintes de ordem e concentração. Tudo parecia caótico e improvável, mas na tela do videoassist, como por milagre, o básico parecia bem resolvido.
“Não preciso de mais de 10 minutos para preparar minha cena”, orgulhava-se, sem perder a simpatia, Suneil Shetty, um novo astro capaz de fazer vilões e galãs com a mesma desenvoltura. “Aqui não temos essa história de internalizar personagens, amadurecer interpretação etc. Chegamos, filmamos plano e contraplano, e logo estamos prontos para a cena seguinte”, contou-me numa conversa informal no jardim da casa. Reconheci-o de um papel coadjuvante em Kyon Ki, o que já me dava ares de intimidade com o cinema hindi. “Bollywood conquistou o público pela naturalidade com que nos comportamos na tela. E pelas canções, é claro”, explicou Shetty, um desses semideuses que já não podem sair à rua impunemente.
No estúdio Rajtaru de finalização, fui apresentado a alguns dos mais modernos sistemas de computação gráfica do mundo, o que garante o look atualizadíssimo das produções mais caras, da publicidade e dos videoclipes indianos.
Alguns notórios de Bollywood deram o ar de sua graça na abertura do 35º Festival Internacional de Cinema da Índia, evento itinerante que pretende fincar raízes no estado de Goa. No dia 24 de novembro, depois de um desfile folclórico à moda das escolas de samba pelas ruas de Panaji, a capital do estado, e de uma longa solenidade oficial, o evento abriu pela primeira vez com um filme latino-americano, o brasileiro Olga, de Jayme Monjardim. A biografia de Olga Benário foi recebida com interesse, mas qualificada por um crítico como “oversentimental”.
Goa é um estado de exceção no panorama da Índia. A colonização portuguesa deixou não apenas nomes, devoções católicas e casarões avarandados, como também uma descontração sem similar em todo o país. Em Goa, velhos mochileiros e hippies perdidos ainda dão o tom, os turistas quase competem em número com a população local e os namorados se amassam sob os coqueirais sem fim. Bom lugar para um festival de cinema, caso eles consigam juntar infra-estrutura e profissionalismo ao charme natural de Goa.