Algumas pessoas se incomodaram com o fato de eu ter me incomodado tanto com a divisão marqueteira de “Ninfomaníaca” em duas partes. Até escrevi um artigo só sobre o assunto (leia aqui) antes da crítica propriamente dita. Agora sou obrigado a fazer algo que procuro evitar, que é escrever um texto crítico na primeira pessoa, mas não vejo outra saída: é difícil pacas criticar a metade de um filme. Por uma simples razão: como se trata de um único filme dividido em duas partes sem qualquer critério pelos produtores, qualquer avaliação crítica que se faça sobre “Ninfomaníaca – vol. 1” pode mudar completamente quando tivermos acesso ao volume 2. Nesse ínterim, nosso crítico convidado Gabriel Papaléo de certa forma resumiu com bastante clareza algumas de minhas impressões (leia aqui).
Portanto, o que vou tentar fazer agora não é exatamente a crítica de “Ninfomaníaca – vol. 0,5 – parte 1” (melhor chamá-lo assim), mas um esboço da crítica de um filme inteiro ao qual só tive acesso à metade, como já tinha antecipado em minha pequena crítica para O Globo (leia aqui).
Após assistir pela segunda vez à primeira metade de “Ninfomaníaca”, continuo com a mesma impressão: Lars Von Trier está tirando um grande sarro com a cara da plateia. Quer que seus fãs o levem a sério, que seus detratores o exponham ao ridículo, que os críticos caiam em sua armadilha. Peter Debruge, da Variety (leia aqui), foi o primeiro a enxergar que Seligman, o personagem de Stellan Skarsgard, pode estar muito bem fazendo o papel de um crítico, tentando interpretar a todo custo, com analogias ridículas, o que escuta de Joe. Ninguém pode imaginar que um cineasta de obras-primas como “Dogville” e “Dançando no Escuro” esteja se levando a sério quando coloca um personagem para comparar a aventura sexual de uma ninfomaníaca com a vida dos peixes, com direito a ilustrações redundantes em cima do que por si só já é ridículo.
Crítico? Psicanalista? Pouco importa. O mais interessante que Seligman proporciona é permitir ao diretor, através de toda essa tiração de sarro, refletir sobre o ato de narrar. Joe (Charlotte Gainsbourg) está narrando sua história para Seligman, e Seligman é o intermediário entre a narradora dentro do filme e o narrador exterior, o diretor-roteirista. É Seligman que, em determinado momento, interrompe o desenvolvimento da narração de Joe para dizer que “isso fica pra depois, como num romance”. Ou então, próximo ao final, quando a personagem de Joe jovem (Stacy Martin) se reencontra com Jerome (Shia LeBeouf), Joe diz a Seligman: “De que maneira você aproveitará melhor minha história? Acreditando ou não na coincidência de reencontrar Jerome no meio do parque?”
Livre das amarras narrativas, Von Trier pode experimentar nos capítulos de seu meio-filme, e não há dúvidas de seu talento como diretor ao misturar diferentes registros, do drama existencial em preto e branco quando Joe visita seu pai no hospital à mais pura comicidade do quase monólogo estrelado por uma genial Uma Thurman. O grande problema é que, tirando esses lampejos, ele parece ter muito pouco a dizer. Mas não se pode chegar a nenhuma conclusão antes de “Ninfomaníaca – vol. 0,5 – parte 2”. Só nos resta aguardar até março.